sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Urubus por "douglasrodarte"

Uma leitura em Drummond
O curta Urubus é um filme frio, quase colossal. Repare o olhar dos personagens: Josué (Mauri de Castro) e Alípio (Juquinha) – não é um olhar; é uma feição Clariceana, do tipo da personagem Ana, no conto Amor, em Laços de Família, que ₺olhava e via um cego mascando chicletes.” Confesso que é  um filme curto, mas longo nas possibilidades de leitura, deixa a plateia sem fôlego. Belíssimo e impactante.
Escrito por Miguel Jorge, é um texto rápido que conta a história de dois catadores de lixo. Na verdade, não catadores, mas moradores do Lixão. Miguel escreve um roteiro que não segue na via do monólogo, ou mesmo um filme curta-documentário, como é o desbravadorEstamira. Miguel prefere revelar cenas simbólico-verdadeiras que vão mostrando a crueza das relações humanas a partir de um cenário de vivência muito além da vivência humana. Lá é lugar de urubus. Lá vive o Urubu-rei (Sarcoramphus papa). Ele prefere a ave de rapina como ponto de apoio à temática do lixão. Na verdade, em Miguel, nos parece que o Urubu é apenas o ícone do, talvez, mas baixo nível de decomposição de matéira cadavérica. Sabia? Os urubus não possuem siringe (órgão vocal das aves), logo não podem cantar. Portanto, ao invés de cantar eles crocitam. É assim que o Alípio e o Josué são mostrados: eles crocitam. Na mais tenra e densa condição humana. Também não falamos, grunimos; não expressamos inteligibilidade, não comunicamos, não amamos, nem conquistamos; às vezes, apenas sonhamos. Um sonho fétido, mas ainda sonhos.
É triste quando olhamos a visão fria de Drummond que nos mostrou nos dissecou, de forma nada humana, mas dócil e austera ao mesmo tempo de nossa condição humana na boca de bois: Um boi vê os homens. No poema, nos encontramos como um espelho refletindo o que não queremos ver:
Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes.
Ah, espantosamente graves, até sinistros.
Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.
E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos –
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.
Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.
Desculpe sair um pouco da Prosa. Voltei. Foi necessário. É essa nitidez vil em Drummond que nos desconcerta. Ele já havia nos quebrado com a pergunta poética: E agora, José? Miguel Jorge, pergunta através dos diálogos de Urubus: E agora, Alípio? E, na mesma velocidade, deixa ecoar a pergunta retórica drummondiana:
E agora, você?
Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama, protesta?
O roteiro não deixa escapar frases não ditas; é como um diálogo preciso com alguém bem mais velho, um senhor, um avô que – quase já não quer falar; ou mesmo, um negrume diálogo na tentativa de resgatar uma relação que já se foi, mas nenhum dos dois tem a coragem de abrir as feridas para consertar algo. Não. Ninguém fala. Não há alteridade. Só grunidos. Somente o crocitar nos rodeia.  Somos nós e nós somente. As perguntas gruniantes da alma humana nascem dos lixões da existência. Nos lixões onde é lugar de encontrarmos a proliferação de vetores de doenças (moscas, mosquitos, baratas e ratos). Manuel Bandeira que o diga com o seu O bicho. Lá encontramos também os urubus. Gente. Isso, gente-urubu.
Sabemos que aqui pertinho de nós, no município de Ilhéus, os resíduos sólidos são lançados. Lá tem lixões. No município de Ilhéus, os resíduos sólidos são lançados no mangue próximo à praia do Cururupe, causando a contaminação do solo, e com o decorrer do tempo, o ₺chorume” (líquido que é produzido pela decomposição da matéria orgânica contida no lixo, chega e contamina até os lençóis freáticos. Alguém vive lá: gente-urubu. Lá vive o Josué e o Alípio. Eles nos representam.
A relação mostrada no curta é uma relação de subserviência por parte do Josué (Mauri de Castro).  Na dimensão mais satânica que se possa imaginar, o Alípio (Juquinha) tipifica a figura do suserano. Explico: a Vassalagem é um sistema social econômico, que foi usado principalmente na idade média, onde um indivíduo denomindado vassalo, oferece ao senhor, fidelidade e trabalho em troca de proteção e um lugar no sistema de proteção.
Desculpe, mas o Miguel é  ₺mal”. Nenhum de nós queria saber disto. Que em muitas de nossas cidades-lixões nos comportamos como vassalos. Pôxa! Miguel, pra quê revelar isso, cara! É Assim em Urubus. Uma relação vassalar, necropiciosa, desumana.
Urubus termina com os dois personagens principais, pois o terceiro (Sandro Torres), é mais subserviente ainda, fora do ´processo de produção´ legal, tenta entrar, mas é impedido por Alípio, dono do sistema de produção vassalar – no seguinte diálogo de fim de dia como catadores-moradores do lixão: ₺Alípio, hoje você não vai me bater?₺. Não, Josué, hoje não! Hoje, nós vamos pra igreja rezar.”.. Há uma pausa reticente nas imagens, logo quebrada pelo infantil e menosprezado Josué: ₺Alípio, será que Deus olha pra nós?₺.
O Olhar de Alípio rasga-se pela risada  que é um som absurdo e, de certa forma, agônico. A risada de Alípio silencia a fala de seu grunido almático da realidade crua com os sem-chão. Quando se tem um filme curto e compacto, altamente polissêmico como é Urubus, a alma, nem sempre depois descansa. Saímos de defronte à tela com a alma mais drummondiana que antes: saímos como uma “agitação incômoda₺ e um “translúcido vazio interior₺ que nos “torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.₺
Precisamos bastante de filmes assim. Secos, frios, tão singelos, que usam, como Drummond usou um boi pra falar a respeito de nós, Miguel Jorge, usou urubus, talvez, como uma metáfora da condição do urbano. Talvez assim, os ouvimos. Quem sabe.
Ensaio sobre Urubus
DOUGLAS RODARTE é escritor goiano.
É licenciado em Letras Português/Inglês pela PUC/Goiás.

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